Diante do caos que é a existência e da nossa busca incessante por entender e explicar tudo à nossa volta, a religião talvez seja o maior alento da humanidade. Sempre conferindo uma motivação final em cada coincidência, golpe de sorte, mérito próprio ou fatalidade, até os mistérios mais inexplicáveis e incoerências que brotam das injustiça sociais são explicadas, satisfatoriamente ou não, como parte do plano personalizado que um Deus onipresente e onisciente preparou para cada um de nós. Diante disso, “Missa da Meia-Noite” extrapola essa ideia através de uma possibilidade fantástica e seu posterior entendimento pelo prisma de uma pequena comunidade de uma ilha formada de 127 pessoas que vivem, como os apóstolos de Jesus, da pesca. Sendo uma comunidade católica, é de se supor que essa visão interpretativa e criação de sentido é construída a partir de uma base hierárquica forte ocupada pela igreja e pelas autoridades locais.
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Netflix
Vozes e Vultos
Catherine, uma artista de Manhattan (Amanda Seyfried) se muda com sua família para o Vale do Hudson. Conforme ela começa sua nova vida num vilarejo histórico, ela passa a suspeitar que seu casamento e sua casa estão cercados por segredos obscuros.
A trama era promissora. Uma família quebrada, marido e esposa com problemas e relacionamento cheio de mazelas e abusos. Para apimentar a trama dando um ar fantástico, uma casa mal-assombrada. Porém James Norton (George Claire) não toma boas escolhas de interpretação, dando a impressão de não estar à vontade no papel, e isso nem ao menos é usado em favor do filme. Natalia Dyer (Willis) aparece e some, sem maiores explicações. A subtrama de Eddy Vayle, interpretado por Alex Neustaedter e o seu passado com a família na casa não é explorado para nenhum fim, bem como os problemas de saúde de Catherine, e aqui eu dou um voto a favor da Amanda Seyfried , que tenta segurar o filme nas costas e faz dele algo suportável por uma boa parte do tempo.
As decisões tomadas pelos diretores investem numa ambientação muito bem executada, mas a maneira desleixada com que algumas cenas fluem, rápidas demais com cortes abruptos e outras lentas demais narrando situações que não movimentam a história pra frente, tornam o filme irremediavelmente longo, com inacreditáveis duas horas.
Como drama familiar é falho, como filme de fantasmas falta aquela costura que faz a transição entre o real e o sobrenatural parecer fluida, ligando as várias dramaturgias e gêneros numa mistura coesa. Lembrei muito de “Os Órfãos“, a refilmagem de “Os Inocentes” comandada pela Flora Sigismondi e que, apesar de todos os defeitos de concepção e roteiro que tem, ainda se sai bem melhor que esse “Vozes e Vultos“. O desfecho poético poderia até funcionar, se tivesse alguma poesia ao longo das duas horas que passaram.
Direção: Shari Springer Berman, Robert Pulcini
Roteiro: Shari Springer Berman, Robert Pulcini, baseado numa história de Elizabeth Brundage
Elenco: James Norton, Ana Sophia Heger, Amanda Seyfried, Charlotte Maier, Kristin Griffith, Ben Graney, Molly Jobe, Joey Auzenne, Kelcy Griffin, Cotter Smith, Dan Daily, Karen Allen
Trilha Sonora: Peter Raeburn
Fotografia: Larry Smith
Montagem: Louise Ford, Andrew Mondshein
Host – Breve Comentário
Dizem que a limitação é a mãe da criatividade. Nada mais limitador do que a pandemia global que estamos vivendo. “Host“, que conta a história de um grupo de amigos que se reúnem numa videoconferência no zoom para fazer um espécie de “sessão espírita“, é um longa que abraça a limitação na sua forma.
Com a aparência de ter sido filmado numa videoconferência e trazendo efeitos visuais que facilmente imaginamos sendo replicados por qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência com programas de computador usuais, o longa usa a aparente simplicidade para gerar envolvimento no espectador, que se acostumou em se comunicar remotamente ou ver pessoas próximas fazendo isso, e investe numa trama tradicional de fantasma/entidade tantas vezes empregada no cinema e que já conhecemos cada clichê, mas que aqui ganha vida tanto pelo contexto em que vivemos como pela maneira que é empregada, sem exageros em criar jump scares e inclusive sendo capaz de gerar algumas imagens emblemáticas, como a máscara/filtro que paira no ar, as luzes que piscam ou as fotos tiradas em câmera polaroid.
É interessante notar que o inimigo invisível surge a partir de uma regra não cumprida por uma das participantes, algo que remete diretamente ao que vivemos com as regras de distanciamento social e a disseminação do coronavírus, o “inimigo” invisível do mundo real.
O longa peca somente em alguns ângulos e planos em que são difíceis de imaginar que sejam criados por uma pessoa carregando um laptop enquanto caminha.
“Host” é um filme que esbanja criatividade e conversa com o momento atual, remetendo muito a títulos como “Amizade Desfeita” e em menor grau com “Ratter” e tem tudo para se tornar aquilo que os primeiros “A Bruxa de Blair“, “Atividade Paranormal” e “REC” foram em suas épocas.
Direção: Rob Savage
Roteiro: Rob Savage, Gemma Hurley, Jed Shepherd
Elenco: Haley Bishop, Jemma Moore, Emma Louise Webb, Radina Drandova, Caroline Ward
Montagem: Brenna Rangott
A Maldição da Mansão Bly – Breve comentário
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Após a trágica morte de uma au pair, Henry contrata uma jovem americana para cuidar de sua sobrinha e sobrinho órfãos que moram na Mansão Bly.
O que lhe dá medo? Um pesadelo povoado de monstros? Uma sombra que passa pelo canto do olho? Um grito distante? Ou a perda de uma pessoa amada? De um filho, ou filha, talvez. De esquecer quem são as pessoas que estão ao seu lado? De sonhar e nunca mais acordar?
O criador Mike Flanagan (de “Doutor Sono” e “Hush: A Morte Ouve”), nesta adaptação cheia de personalidade da clássica obra literária “A Volta do Parafuso“, constrói uma narrativa calcada, num primeiro momento, nas múltiplas histórias de luto de seus personagens, que compartilham suas histórias ao redor de uma fogueira. Mas vai além. Somos o resultado das nossas lembranças do passado e expectativas do futuro, e a viagem mais rica que podemos fazer é dentro das nossas memórias. Perdê-las é perder a nossa identidade. E eternamente retornar a elas cria um laço de ressignificação constante.
Com um elenco muito expressivo em seu favor, Mansão Bly tem credibilidade nas emoções que quer passar em suas múltiplas histórias, e o entrosamento entre Dani, Flora e Miles, magistralmente interpretados pelo trio Victoria Pedretti, Amelia Bea Smith e Benjamin Evan Ainsworth, com seus passados de famílias “quebradas” e perdas é o que dá força à serie.
Mansão Bly consegue transitar habilmente entre o drama e o sobrenatural que é difícil enxergar onde um começa e o outro termina. Próximo do desfecho, já tendo contado as histórias íntimas de todos os seus personagens principais, a mensagem de perda de memória evolui numa nova personagem, evocando uma metáfora sobre apagamento histórico, algo que nos dias de hoje, com a ascensão de uma direita que constrói uma visão distorcida de mundo, encontra um eco poderoso. Mas é no seu desfecho que temos as melhores ideias sendo trabalhadas. A solução dada à ameaça que surge remete ao próprio sentimento de empatia, tão necessária nos nossos dias. Daí surge o verdadeiro horror velado da perda de identidade, uma metáfora à depressão e esgotamento emocional vivido pela personagem. E é na sensação de perder as pessoas que se ama que reside a beleza, o drama e o horror, enquanto desconstrução de identidade, de “Mansao Bly“.
Elenco: Victoria Pedretti, Henry Thomas, Oliver Jackson-Cohen, Kate Siegel, T’Nia Miller, Rahul Kohli, Benjamin EvanAinsworth, Amelia Bea Smith, Amelia Eve,Tahirah Sharif
Direção: Ciarán Foy, Liam Gavin, Axelle Carolyn, Mike Flanagan, Ben Howling, E.L. Katz, Yolanda Ramke
Roteiro: Mike Flanagan, Henry James, Rebecca Klingel
Música: The Newton Brothers
Fotografia: Maxime Alexandre, James Kniest
Next in Fashion
Quando falo na simpatia dos apresentadores também me refiro ao entrosamento da dupla de ingleses Alexa Chung e Tan France. Este último é um designer de moda inglês que já participara da série Queer Eye, enquanto Alexa é modelo, editora da revista Vogue britânica, designer e uma figura muito influente no mundo da moda. Enfim, além de serem extremamente influentes e experts no tema, a dupla tem uma química invejável, humor delicioso e em cada episódio dão dicas de moda de acordo com o tema. Outro grande diferencial da série está em seus participantes, escolhidos a dedo. Não se tratam de amadores, são estilistas responsáveis por vestir muitos famosos, a maioria já possui uma marca e uma especialidade no mundo da moda, só lhes falta a fama e o peso de seu nome associado a uma coleção, objeto de disputa neste Reality, além do prêmio em dinheiro. Os competidores vem de lugares diferentes do mundo, China, Coreia, Inglaterra, Estados Unidos, Itália, etc. Cada episódio trás uma mini biografia de cada um dos participantes ao mesmo tempo que mostra a busca frenética pela construção de looks que acontece em dois dias, seguido de um desfile acompanhado pelos apresentadores e seus jurados.
A cada episódio a série conta com jurados convidados que são especialistas no no tema (em um dos episódios é a modelo brasileira Adriana Lima), que varia de temas como rock, lingeries, Streetwear, estampas, militar, etc. Para quem não tem grande interesse ou conhecimento pelo mundo da moda, como eu, que deste mundo só conheço o filme “O Diabo Veste Prada”, vale acompanhar para entender melhor esse universo e acompanhar várias lições de criatividade e desenvolvimento de design sendo aplicadas por especialistas na área. Para quem já é profissional, estudante ou amante do tema, certamente será um prazer assistir. Outra grande característica da série é a diferença de personalidade de cada um dos artistas, que produz uma interpretação distinta de cada tema. É impossível, ao longo da série, não gostar de todos os participantes do Reality, sofrer com eles com o prazo apertando e na expectativa que consigam entregar suas peças para o desfile, sendo uma tarefa extremamente difícil torcer para um só.
Assim, mais do que sobre moda ou design, ou mesmo sobre processo criativo, “Next in Fashion” é sobre a paixão de seus competidores exposta nos looks construídos, com pitadas de resiliência e força de vontade de quem teve que passar por cima de muita resistência e preconceitos para ter um lugar dentro do mundo da moda.
Apresentadores: Alexa Chung, Tan France
Modelos: Prasad Romijn, Zeta Morrison, Carmen Carrera, Katerina Kaouri, Lauren Umansky, Lucas Machado
Produtores: Amy Bond, Adam Cooper, Amanda Dobkowitz, Aleksandar Milojkovich, David Tobin, Angelo la Pietra
Música: Jeff Lippencott, Mark T. Williams
Participantes: Angel Chen, Minju Kim, Ashton Hirota, Marco Morante, Isaac Saqib, Nasheli Ortiz-Gonzalez, Farai Simoyi-Agbede, KiKi Peterson, Carli Pearson, Daniel Fletcher, Narresh Kukreja, Lorena Saravia Butcher, Julian Woodhouse, Hayley Scanlan, Claire Davis, Adolfo Sanchez, Angelo Cruciani, Charles Lu
Twin Peaks – Temporada 3
Quem se aventura a assistir as obras de arte que David Lynch dirige sabe que elas transcendem o próprio conceito de cinema enquanto linguagem, quebrando todos os paradigmas convencionais de um roteiro autoexplicativo e criando filmes tomados por uma série de incógnitas sem soar, por incrível que pareça, aleatório. Muito pelo contrário, é dessa forma que Lynch faz surgir em nós sensações das mais viscerais, desde a melancolia, a dor profunda e o horror. Podemos não entender o que se passa em tela racionalmente, mas nossas sensações não saem incólumes à experiência. É sob esse prisma que a terceira temporada de “Twin Peaks” se converte na experiência mais marcante do ano de 2017, cabendo aqui discutir sobre a mudança de paradigma que a televisão pode estar vivendo, se convertendo numa experiência por vezes mais criativa, ousada e gratificante do que o cinema mainstream, tomado pelas amarras de um formato feito para lucrar milhões em um único Blockbuster sem poder ousar.
Originalmente nos anos 1990 a série explorava o assassinato de Laura Palmer, uma popular estudante de uma cidade ficcional do interior de Washington. Sua narrativa ia de uma tradicional novela policial com personagens excêntricos e fortes influências de surrealismo vindas do diretor David Lynch, no auge de sua carreira no cinema, sendo premiado pela Palma de Ouro em Cannes por “Coração Selvagem” ainda enquanto a série era exibida. A influência da série original nas produções para a TV é sempre citada, numa época em que era novidade ter um diretor consagrada trabalhando numa série, algo que hoje em dia já é mais comum, devido à própria influência de Twin Peaks.
Pois nessa onda de revivals e refilmagens, que no cinema vão desde “Star Wars”, “Jumandi”, “Jurrasic Park/Word”, e na TV passa por “Gilmore Girls” e “Arquivo X”, é em “Twin Peaks” que vemos que simplesmente não basta recriar pura e simplesmente as convenções estabelecidas no material original. É preciso dar um passo a frente e fazer sentir a passagem de tempo. O expectador já não é mais o mesmo, logo os personagens também não. E é nessa expectativa de voltar a ver esses personagens em sua forma mais conhecida e consagrada 25 anos depois do término da conturbada segunda temporada que Mark Frost e David Lynch brincam com a identidade do protagonista, o agente Cooper, expandem o universo criado na série original com uma série de metáforas que falam sobre o nosso mundo mesquinho, superficial e que tem dificuldade de entender o outro.
É latente a constatação de um EUA doente depois de uma crise econômica e da eleição de Trump. O desencanto com as autoridades se faz sentir no decorrer da trama e as críticas às condições sociais soam muito fortes. Os questionamentos são criados e poucos são respondidos de maneira tradicional, abrindo espaço para múltiplas interpretações, algo recorrente nos trabalhos de Lynch. A série atinge a excelência em narrativa e fotografia, criação de clima e direção acima da média e um design de som primoroso assinado pelo próprio diretor, que também atua. Se é para destacar algum episódio em especial, o terceiro é um show a parte de ambientação e questionamentos, mas é no episódio oito que Lynch se reinventa num trabalho audiovisual e fortalece a mitologia da série, numa das experiências mais intensas e envolventes que uma série de televisão poderia proporcionar.
Os shows que fecham alguns dos episódios são catárticos e as citações constantes ao filme “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer” tornam o longa praticamente obrigatório para uma experiência plena. Pois nesse conto de fadas macabro a sensação que fica no final é a da tragédia de um homem que se descobre muitos e ao encontrar a sua verdadeira identidade percebe que luta contra algo muito maior que si, talvez um poder destrutivo presente dentro de todos nós que nos impõe um caminho trágico, mas que não impede que nossa vida valha a pena ao tentar mudar nosso destino e transformar a nossa existência.
Trailers da temporada 3
Trailer do filme “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, dirigido pelo próprio Lynch.
Mini documentário feito pela Showtime em três partes para mostrar a influência da série em outros realizadores e a base de fãs da série.
Twin Peaks – The Return (Temporada 3)
Direção: David Lynch
Roteiro: Mark Frost, David Lynch
Elenco: Kyle MacLachlan, Jay Aaseng, Joe Adler, Mädchen Amick, Dana Ashbrook, Owain Rhys Davies, Eamon Farren, Sherilyn Fenn, Jay R. Ferguson, Patrick Fischler, Robert Forster, Nathan Frizzell, Harry Goaz, Michael Horse, Caleb Landry Jones, Jennifer Jason Leigh, Peggy Lipton, James Marshall, Everett McGill, Clark Middleton, John Pirruccello, Kimmy Robertson, Wendy Robie, Tim Roth, Rodney Rowland, Harry Dean Stanton, J.R. Starr, Naomi Watts, Nae
“A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell” e “O Fantasma do Futuro” – Breve comentário
SPOILERS – Leia somente se já assistiu o filme
O Fantasma do Futuro (1995)
Star Trek: Discovery – Trailer
Star Trek: Discovery – Comic Con
Hiperlinks:
Moonlight: Sob a Luz do Luar – Breve Comentário
Com uma mensagem potente e relevante, Barry Jenkins entrega um filme que merece ser visto também pela sua concepção cinematográfica contemporânea. Com uma câmera que sutilmente viaja junto com seus personagens através da trajetória do garoto Chiron (Ashton Sanders), que desde o início do longa sofre de preconceitos e opressões, testemunhamos, num elenco composto exclusivamente por atores negros, o peso e a dificuldade do preconceito na sociedade contemporânea. Questões sobre homossexualidade e drogas são abordadas pelo filme com maturidade e verdade através da trajetória de seu personagem.
O diretor entrega enquadramentos compostos com uma beleza extrema e se comunica muito bem através da fotografia remetendo muitas vezes ao cinema de Wong Kar Wai (“Felizes Juntos”, “Amor à Flor da Pele”, “2046”), ao mesmo tempo que sua câmera dinâmica produz alguns momentos de perda de foco , lembrando muito os últimos trabalhos de Terrece Mallick, assim como a maneira crua com que retrata a realidade de Chiron remete ao que Fernando Meirelles fizera em “Cidade de Deus”, Bruno Barreto em “Última Parada 174” e mesmo Walter Salles ao longo de sua filmografia. Dessa forma Barry Jenkins já se torna um cineasta que se destaca pelo difícil equilíbrio entre o lirismo e a crueza que ditam o tom de “Moolight”.
O estudo de personagem desenvolvido aqui em três capítulos que formam os três atos da história compõe um arco para o protagonista, estabelecendo um ciclo. Todas as características desenvolvidas pelos interpretes deste personagem formam uma unidade e transmitem um toque de tristeza para o garoto. Barry Jenkins mais uma vez acerta quando evita de estabelecer uma relação de pai e filho entre Chiron e Juan durante todo o longa e criar um filme melodramático parecido com muitos que já existem. A sua maneira de contar essa história é eficiente, poderosa e permite grande reflexão sobre a natureza do ser humano, sobre a sociedade contemporânea e a busca de identidade.
Spoiler (Leia somente se já assistiu ao filme)
É interessante perceber que por mais que Chiron seja tratado como homossexual ao longo dos dois atos do filme, o personagem em si em nenhum momento parece ter a chance de se descobrir dessa forma. Tendo tido uma experiência de caráter sexual com Kevin, filmada de maneira sutil e terna pelo diretor, Chiron é um ser humano que sente a falta de afeto, tendo-o encontrado nessa experiência. Retratado desde o início como um garoto que parece construir um muro ao seu redor baseado nas experiências traumáticas com a mãe e na escola e dessa forma parece nunca ter tido a liberdade necessária para se descobrir, como retrata em seu diálogo com Kevin já no terceiro ato, em que revela que aquela experiência fora a única vez que outra pessoa o tocara. É no terceiro ato que temos também a grande transformação do personagem e o fechamento do ciclo, quando Chiron, agora apelidado de Black, se torna um traficante tal qual Juan, que lhe acolhera no primeiro ato do longa. É ali que o personagem fortifica o muro que o separa das pessoas, criando uma persona a fim de se proteger das pancadas que a vida lhe desferira desde cedo, se escondendo dos outros nessa nova personalidade e, consequentemente, de si mesmo. O mais triste é que toda essa dor não se limita a um personagem de um filme, mas é sintoma de uma parcela da sociedade excluída e oprimida pelas suas opções ou simplesmente pela cor de sua pele.
Direção: Barry Jenkins
Elenco: Alex R. Hibbert , Ashton Sanders , Trevante Rhodes , Naomie Harris , Janelle Monáe, Jaden Piner , Jharrel Jerome , André Holland , Mahershala Ali
Roteiro: Barry Jenkins
Fotografia: James Laxton
Música: Nicholas Britell
Montagem: Joi McMillon , Nat Sanders
Design de Produção: Hannah Beachler
Figurino: Caroline Eselin
Girlboss – 1ª Temporada
Geralmente séries de comédia com episódios de pouco mais de vinte minutos se baseiam na criação de estereótipos para caracterizar seus personagens, com o objetivo de desenvolver com certa agilidade uma trama no tempo estipulado. “The Big Bang Theory“, apesar de eu ter visto poucos episódios, em temporadas variadas, é uma das séries que mais usa a criação de estereótipos de personagens. Esta mais nova série da Netflix, “Girlboss“, criada por Kay Cannon, gera essa impressão nos primeiros episódios, contando a história “baseada livremente em fatos reais” de Sophia, uma garota narcisista que não consegue se ajustar a nenhum emprego e tem um relacionamento difícil com o pai, mas que por acaso descobre ao criar uma conta do eBay e passar a vender roupas vintage por ela reformadas e revendidas uma possível vocação e independência financeira, criando a sua página no eBay chamada Nasty Gal.
Nesses primeiros episódios temos a impressão de que estamos assistindo o estereótipo de uma garota rebelde e narcisista que, interpretada por Britt Robertson com sua habitual competência para parecer espontânea e natural, sem fazer força para atuar, tem em sua intérprete e elenco de apoio a principal motivação para seguirmos acompanhando a sua história. Porém, a medida que o enredo avança percebemos o esforço do roteiro em, não justificar, mas desenvolver e criar um contexto em que todo o comportamento de Sophia se baseia, desde sua relação difícil com o pai e a ausência da mãe, brilhantemente desenvolvida, até a relação com a melhor amiga Annie (Ellie Reed), que passa por altos e baixos ao longo da temporada. A medida que seu negócio evolui e sua vida pessoal passa por severas mudanças, o relacionamento com Shane (Johnny Simmons) é desenvolvido e serve de catalizador para o orgulho e egocentrismo da personagem, mas também como uma maneira de combatê-lo e colocá-lo em perspectiva. Como aqui não temos uma menina inocente e passiva, é possível que não concordemos com as atitudes de Shopia, mas o seu sonho de felicidade, liberdade e independência é algo que cativa e que se assume como sendo o principal discurso construído pela série.
É interessante notar que, como a história se passa entre 2007 e 2008, nesses dez anos a nossa tecnologia e a maneira como nos relacionamos com ela mudou muito, desde os celulares, passando pela maneira de usar a internet, fica muito clara a época em que se passa a série. O trabalho de montagem feito no decorrer da série atinge, em alguns episódios, quase a perfeição, tornando a narrativa fluida e seguindo um ritmo que remete constantemente a natureza da sua protagonista. O uso das cores pela fotografia ressalta que o assunto moda é forte na série, gerando planos muito bem iluminados e compostos, fugindo da paleta monocromática e sem criatividade que a maioria das séries cômicas costuma recorrer.
Revelando-se, quase como uma surpresa agradável no seu desfecho, um coeso estudo de personagem, “Girlboss” é uma série que passa a humanidade da sua protagonista em seus erros e acertos, incertezas e pedras no caminho, envolvendo o espectador pelas situações cômicas orgânicas e genuinamente engraçadas, como também pela busca de um sonho que Shopia empreende nesses treze divertidos episódios.
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Criador: Kay Cannon
Direção: Christian Ditter, Steven Tsuchida, John Riggi, Amanda Brotchie, Jamie Babbit
Roteiro: Kay Cannon, Caroline Williams, Sonny Lee, Eben Russell, Jake Fogelnest, Joanna Calo, Jen Braeden
Elenco: Britt Robertson, Ellie Reed, Johnny Simmons, Alphonso McAuley, RuPaul, Dean Norris, Jim Rash, Amanda Rea, Rebecca Krasny, Melanie Lynskey