Missa da Meia-Noite

Diante do caos que é a existência e da nossa busca incessante por entender e explicar tudo à nossa volta, a religião talvez seja o maior alento da humanidade. Sempre conferindo uma motivação final em cada coincidência, golpe de sorte, mérito próprio ou fatalidade, até os mistérios mais inexplicáveis e incoerências que brotam das injustiça sociais são explicadas, satisfatoriamente ou não, como parte do plano personalizado que um Deus onipresente e onisciente preparou para cada um de nós. Diante disso, “Missa da Meia-Noite” extrapola essa ideia através de uma possibilidade fantástica e seu posterior entendimento pelo prisma de uma pequena comunidade de uma ilha formada de 127 pessoas que vivem, como os apóstolos de Jesus, da pesca. Sendo uma comunidade católica, é de se supor que essa visão interpretativa e criação de sentido é construída a partir de uma base hierárquica forte ocupada pela igreja e pelas autoridades locais.
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Vozes e Vultos

Catherine, uma artista de Manhattan (Amanda Seyfried) se muda com sua família para o Vale do Hudson. Conforme ela começa sua nova vida num vilarejo histórico, ela passa a suspeitar que seu casamento e sua casa estão cercados por segredos obscuros.

A trama era promissora. Uma família quebrada, marido e esposa com problemas e relacionamento cheio de mazelas e abusos. Para apimentar a trama dando um ar fantástico, uma casa mal-assombrada. Porém James Norton (George Claire) não toma boas escolhas de interpretação, dando a impressão de não estar à vontade no papel, e isso nem ao menos é usado em favor do filme. Natalia Dyer (Willis) aparece e some, sem maiores explicações. A subtrama de Eddy Vayle, interpretado por Alex Neustaedter e o seu passado com a família na casa não é explorado para nenhum fim, bem como os problemas de saúde de Catherine, e aqui eu dou um voto a favor da Amanda Seyfried , que tenta segurar o filme nas costas e faz dele algo suportável por uma boa parte do tempo. 

As decisões tomadas pelos diretores investem numa ambientação muito bem executada, mas a maneira desleixada com que algumas cenas fluem, rápidas demais com cortes abruptos e outras lentas demais narrando situações que não movimentam a história pra frente, tornam o filme irremediavelmente longo, com inacreditáveis duas horas.

Como drama familiar é falho, como filme de fantasmas falta aquela costura que faz a transição entre o real e o sobrenatural parecer fluida, ligando as várias dramaturgias e gêneros numa mistura coesa. Lembrei muito de “Os Órfãos“, a refilmagem de “Os Inocentes” comandada pela Flora Sigismondi e que, apesar de todos os defeitos de concepção e roteiro que tem, ainda se sai bem melhor que esse “Vozes e Vultos“. O desfecho poético poderia até funcionar, se tivesse alguma poesia ao longo das duas horas que passaram.

Direção: Shari Springer Berman, Robert Pulcini

Roteiro: Shari Springer Berman, Robert Pulcini, baseado numa história de Elizabeth Brundage

Elenco: James Norton, Ana Sophia Heger, Amanda Seyfried, Charlotte Maier, Kristin Griffith, Ben Graney, Molly Jobe, Joey Auzenne, Kelcy Griffin, Cotter Smith, Dan Daily, Karen Allen

Trilha Sonora: Peter Raeburn

Fotografia: Larry Smith

Montagem: Louise Ford, Andrew Mondshein

Host – Breve Comentário


Dizem que a limitação é a mãe da criatividade. Nada mais limitador do que a pandemia global que estamos vivendo. “Host“, que conta a história de um grupo de amigos que se reúnem numa videoconferência no zoom para fazer um espécie de “sessão espírita“, é um longa que abraça a limitação na sua forma.

Com a aparência de ter sido filmado numa videoconferência e trazendo efeitos visuais que facilmente imaginamos sendo replicados por qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência com programas de computador usuais, o longa usa a aparente simplicidade para gerar envolvimento no espectador, que se acostumou em se comunicar remotamente ou ver pessoas próximas fazendo isso, e investe numa trama tradicional de fantasma/entidade tantas vezes empregada no cinema e que já conhecemos cada clichê, mas que aqui ganha vida tanto pelo contexto em que vivemos como pela maneira que é empregada, sem exageros em criar jump scares e inclusive sendo capaz de gerar algumas imagens emblemáticas, como a máscara/filtro que paira no ar, as luzes que piscam ou as fotos tiradas em câmera polaroid.

É interessante notar que o inimigo invisível surge a partir de uma regra não cumprida por uma das participantes, algo que remete diretamente ao que vivemos com as regras de distanciamento social e a disseminação do coronavírus, o “inimigo” invisível do mundo real.

O longa peca somente em alguns ângulos e planos em que são difíceis de imaginar que sejam criados por uma pessoa carregando um laptop enquanto caminha.

“Host” é um filme que esbanja criatividade e conversa com o momento atual, remetendo muito a títulos como “Amizade Desfeita” e em menor grau com “Ratter” e tem tudo para se tornar aquilo que os primeiros “A Bruxa de Blair“, “Atividade Paranormal” e “REC” foram em suas épocas.

Direção: Rob Savage

Roteiro: Rob Savage, Gemma Hurley, Jed Shepherd

Elenco: Haley Bishop, Jemma Moore, Emma Louise Webb, Radina Drandova, Caroline Ward 

Montagem: Brenna Rangott

A Maldição da Mansão Bly – Breve comentário

 

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Após a trágica morte de uma au pair, Henry contrata uma jovem americana para cuidar de sua sobrinha e sobrinho órfãos que moram na Mansão Bly.

O que lhe dá medo? Um pesadelo povoado de monstros? Uma sombra que passa pelo canto do olho? Um grito distante? Ou a perda de uma pessoa amada? De um filho, ou filha, talvez. De esquecer quem são as pessoas que estão ao seu lado? De sonhar e nunca mais acordar?

O criador Mike Flanagan (de “Doutor Sono” eHush: A Morte Ouve”), nesta adaptação cheia de personalidade da clássica obra literária “A Volta do Parafuso“, constrói uma narrativa calcada, num primeiro momento, nas múltiplas histórias de luto de seus personagens, que compartilham suas histórias ao redor de uma fogueira. Mas vai além. Somos o resultado das nossas lembranças do passado e expectativas do futuro, e a viagem mais rica que podemos fazer é dentro das nossas memórias. Perdê-las é perder a nossa identidade. E eternamente retornar a elas cria um laço de ressignificação constante.

Com um elenco muito expressivo em seu favor, Mansão Bly tem credibilidade nas emoções que quer passar em suas múltiplas histórias, e o entrosamento entre Dani, Flora e Miles, magistralmente interpretados pelo trio Victoria Pedretti, Amelia Bea Smith e Benjamin Evan Ainsworth, com seus passados de famílias “quebradas” e perdas é o que dá força à serie.

Mansão Bly consegue transitar habilmente entre o drama e o sobrenatural que é difícil enxergar onde um começa e o outro termina. Próximo do desfecho, já tendo contado as histórias íntimas de todos os seus personagens principais, a mensagem de perda de memória evolui numa nova personagem, evocando uma metáfora sobre apagamento histórico, algo que nos dias de hoje, com a ascensão de uma direita que constrói uma visão distorcida de mundo, encontra um eco poderoso. Mas é no seu desfecho que temos as melhores ideias sendo trabalhadas. A solução dada à ameaça que surge remete ao próprio sentimento de empatia, tão necessária nos nossos dias. Daí surge o verdadeiro horror velado da perda de identidade, uma metáfora à depressão e esgotamento emocional vivido pela personagem. E é na sensação de perder as pessoas que se ama que reside a beleza, o drama e o horror, enquanto desconstrução de identidade, de “Mansao Bly“.

Elenco: Victoria Pedretti, Henry Thomas, Oliver Jackson-Cohen, Kate Siegel, T’Nia Miller, Rahul Kohli, Benjamin EvanAinsworth, Amelia Bea Smith, Amelia Eve,Tahirah Sharif

Direção: Ciarán Foy, Liam Gavin, Axelle Carolyn, Mike Flanagan, Ben Howling, E.L. Katz, Yolanda Ramke

Roteiro: Mike Flanagan, Henry James, Rebecca Klingel

Música: The Newton Brothers

Fotografia: Maxime Alexandre, James Kniest

Next in Fashion

Apostando na produção de Reality Shows, a Netflix tem disponível em seu catálogo desde o início deste ano a série “Next in Fashion“, um Reality Show sobre design de moda. Mas não se deixe enganar pelas regras e tendências de Reality Shows que apelam para o conflito entre os participantes ou para as críticas exacerbadas e falta de empatia de seus apresentadores. Sim, é possível fazer um programa com apresentadores simpáticos, que respeitam seus participantes, julgam de maneira justa e expõe todo o processo criativo de estilistas talentosos.

Quando falo na simpatia dos apresentadores também me refiro ao entrosamento da dupla de ingleses Alexa Chung e Tan France. Este último é um designer de moda inglês que já participara da série Queer Eye, enquanto Alexa é modelo, editora da revista Vogue britânica, designer e uma figura muito influente no mundo da moda. Enfim, além de serem extremamente influentes e experts no tema, a dupla tem uma química invejável, humor delicioso e em cada episódio dão dicas de moda de acordo com o tema. Outro grande diferencial da série está em seus participantes, escolhidos a dedo. Não se tratam de amadores, são estilistas responsáveis por vestir muitos famosos, a maioria já possui uma marca e uma especialidade no mundo da moda, só lhes falta a fama e o peso de seu nome associado a uma coleção, objeto de disputa neste Reality, além do prêmio em dinheiro. Os competidores vem de lugares diferentes do mundo, China, Coreia, Inglaterra, Estados Unidos, Itália, etc. Cada episódio trás uma mini biografia de cada um dos participantes ao mesmo tempo que mostra a busca frenética pela construção de looks que acontece em dois dias, seguido de um desfile acompanhado pelos apresentadores e seus jurados.


A cada episódio a série conta com jurados convidados que são especialistas no no tema (em um dos episódios é a modelo brasileira Adriana Lima), que varia de temas como rock, lingeries, Streetwear, estampas, militar, etc. Para quem não tem grande interesse ou conhecimento pelo mundo da moda, como eu, que deste mundo só conheço o filme “O Diabo Veste Prada”, vale acompanhar para entender melhor esse universo e acompanhar várias lições de criatividade e desenvolvimento de design sendo aplicadas por especialistas na área. Para quem já é profissional, estudante ou amante do tema, certamente será um prazer assistir. Outra grande característica da série é a diferença de personalidade de cada um dos artistas, que produz uma interpretação distinta de cada tema. É impossível, ao longo da série, não gostar de todos os participantes do Reality, sofrer com eles com o prazo apertando e na expectativa que consigam entregar suas peças para o desfile, sendo uma tarefa extremamente difícil torcer para um só.


Assim, mais do que sobre moda ou design, ou mesmo sobre processo criativo, “Next in Fashion” é sobre a paixão de seus competidores exposta nos looks construídos, com pitadas de resiliência e força de vontade de quem teve que passar por cima de muita resistência e preconceitos para ter um lugar dentro do mundo da moda.

Apresentadores: Alexa Chung, Tan France
Modelos: Prasad Romijn, Zeta Morrison, Carmen Carrera, Katerina Kaouri, Lauren Umansky, Lucas Machado
Produtores: Amy Bond, Adam Cooper, Amanda Dobkowitz, Aleksandar Milojkovich, David Tobin, Angelo la Pietra
Música: Jeff Lippencott, Mark T. Williams
Participantes: Angel Chen, Minju Kim, Ashton Hirota, Marco Morante, Isaac Saqib, Nasheli Ortiz-Gonzalez, Farai Simoyi-Agbede, KiKi Peterson, Carli Pearson, Daniel Fletcher, Narresh Kukreja, Lorena Saravia Butcher, Julian Woodhouse, Hayley Scanlan, Claire Davis, Adolfo Sanchez, Angelo Cruciani, Charles Lu

Twin Peaks – Temporada 3

Quem se aventura a assistir as obras de arte que David Lynch dirige sabe que elas transcendem o próprio conceito de cinema enquanto linguagem, quebrando todos os paradigmas convencionais de um roteiro autoexplicativo e criando filmes tomados por uma série de incógnitas sem soar, por incrível que pareça, aleatório. Muito pelo contrário, é dessa forma que Lynch faz surgir em nós sensações das mais viscerais, desde a melancolia, a dor profunda e o horror. Podemos não entender o que se passa em tela racionalmente, mas nossas sensações não saem incólumes à experiência. É sob esse prisma que a terceira temporada de “Twin Peaks” se converte na experiência mais marcante do ano de 2017, cabendo aqui discutir sobre a mudança de paradigma que a televisão pode estar vivendo, se convertendo numa experiência por vezes mais criativa, ousada e gratificante do que o cinema mainstream, tomado pelas amarras de um formato feito para lucrar milhões em um único Blockbuster sem poder ousar.

Originalmente nos anos 1990 a série explorava o assassinato de Laura Palmer, uma popular estudante de uma cidade ficcional do interior de Washington. Sua narrativa ia de uma tradicional novela policial com personagens excêntricos e fortes influências de surrealismo vindas do diretor David Lynch, no auge de sua carreira no cinema, sendo premiado pela Palma de Ouro em Cannes por “Coração Selvagem” ainda enquanto a série era exibida. A influência da série original nas produções para a TV é sempre citada, numa época em que era novidade ter um diretor consagrada trabalhando numa série, algo que hoje em dia já é mais comum, devido à própria influência de Twin Peaks.

Pois nessa onda de revivals e refilmagens, que no cinema vão desde “Star Wars”, “Jumandi”, “Jurrasic Park/Word”, e na TV passa por “Gilmore Girls” e “Arquivo X”, é em “Twin Peaks” que vemos que simplesmente não basta recriar pura e simplesmente as convenções estabelecidas no material original. É preciso dar um passo a frente e fazer sentir a passagem de tempo. O expectador já não é mais o mesmo, logo os personagens também não. E é nessa expectativa de voltar a ver esses personagens em sua forma mais conhecida e consagrada 25 anos depois do término da conturbada segunda temporada que Mark Frost e David Lynch brincam com a identidade do protagonista, o agente Cooper, expandem o universo criado na série original com uma série de metáforas que falam sobre o nosso mundo mesquinho, superficial e que tem dificuldade de entender o outro.

É latente a constatação de um EUA doente depois de uma crise econômica e da eleição de Trump. O desencanto com as autoridades se faz sentir no decorrer da trama e as críticas às condições sociais soam muito fortes. Os questionamentos são criados e poucos são respondidos de maneira tradicional, abrindo espaço para múltiplas interpretações, algo recorrente nos trabalhos de Lynch. A série atinge a excelência em narrativa e fotografia, criação de clima e direção acima da média e um design de som primoroso assinado pelo próprio diretor, que também atua. Se é para destacar algum episódio em especial, o terceiro é um show a parte de ambientação e questionamentos, mas é no episódio oito que Lynch se reinventa num trabalho audiovisual e fortalece a mitologia da série, numa das experiências mais intensas e envolventes que uma série de televisão poderia proporcionar.

Os shows que fecham alguns dos episódios são catárticos e as citações constantes ao filme “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer” tornam o longa praticamente obrigatório para uma experiência plena. Pois nesse conto de fadas macabro a sensação que fica no final é a da tragédia de um homem que se descobre muitos e ao encontrar a sua verdadeira identidade percebe que luta contra algo muito maior que si, talvez um poder destrutivo presente dentro de todos nós que nos impõe um caminho trágico, mas que não impede que nossa vida valha a pena ao tentar mudar nosso destino e transformar a nossa existência.

Trailers da temporada 3

Trailer do filme “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, dirigido pelo próprio Lynch.



Mini documentário feito pela Showtime em três partes para mostrar a influência da série em outros realizadores e a base de fãs da série.





Twin Peaks – The Return (Temporada 3)

Direção: David Lynch

Roteiro: Mark Frost, David Lynch

Elenco: Kyle MacLachlan, Jay Aaseng, Joe Adler, Mädchen Amick, Dana Ashbrook, Owain Rhys Davies, Eamon Farren, Sherilyn Fenn, Jay R. Ferguson, Patrick Fischler, Robert Forster, Nathan Frizzell, Harry Goaz, Michael Horse, Caleb Landry Jones, Jennifer Jason Leigh, Peggy Lipton, James Marshall, Everett McGill, Clark Middleton, John Pirruccello, Kimmy Robertson, Wendy Robie, Tim Roth, Rodney Rowland, Harry Dean Stanton, J.R. Starr, Naomi Watts, Nae

“A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell” e “O Fantasma do Futuro” – Breve comentário

Quando estreou nos cinemas, “A Vigilante do Amanhã – Ghost in the Shell” passou – me a  forte impressão de um filme que contava com um departamento de arte primoroso e uma ambientação fortemente inspirada em “Blade Runner”. A sequência inicial que retrata a ciborgue Major interpretada por com muito charme e competência por Scarlett Johansson é simplesmente espetacular pelo seu realismo e inquietante por nos fazer enxergar um corpo humano sintetizado. Mas a frustração causada por este filme só cresce ao percebemos que quando este se pretende discorrer sobre a condição de sua protagonista, sua razão de ser, suas sensações, percepções e sobre a principal questão do filme, o que a diferencia de um ser humano, o roteiro não desenvolve questionamentos instigantes, mas se limita a filosofar com frases de efeito. Sua conclusão deixa muito a desejar e quando vemos a protagonista destroçar seu próprio corpo num tanque-aranha temos a sensação de assistir a algo visualmente brilhante, mas com um enredo imaturo ainda, dando a impressão de uma oportunidade perdida.

Os enquadramentos acima exploram o visual espetacular construído pelo filme.


Ao assistir a animação de 1995, disponível na Netflix, essa sensação é frustração em relação ao filme é intensificada. A animação, ao contrário do filme, investe numa ambientação que remete ao clima cyberpunk pré Matrix, mas que claramente serviu de inspiração para a obra das irmãs Wachowski, como podemos notar na introdução que usa números na cor verde-esmeralda. A sequência inicial da ciborgue sendo sintetizada serviu de inspiração para o filme de 2017, e era um dos seus pontos fortes, porém o live-action peca em não usar a trilha sonora original nesta sequência, que é espetacular, imersiva e inquietante. À medida que avança a animação, que é cerca de meia hora mais curta que o filme, mostra-se imensamente superior. Com um ritmo mais lento e cadenciado, que reforça a solidão de Motoko em sua busca pela própria identidade, a animação constrói um discurso filosófico mais conciso quando fala sobre memória, que se refere como algo que não sabemos definir o que é, mas que usamos para nos definir humanos, sobre autoconsciência e corpo. Enquanto o live-action se limita em citar frases de efeito, o anime faz longos questionamentos e produz um xadrez de ideias que constantemente nos deixa em xeque, me obrigando a pausar e voltar em alguns momentos a fim de absorver o conteúdo daquelas falas. O desfecho do live-action, explorando o passado da personagem e do vilão, mostra-se um grande erro, principalmente visto sobre o prisma do anime.


No anime há espaço para a reflexão e ação, numa ambientação única de um espaço cybepunk pós Blade Runner e pré Matrix 


O vilão aqui, o Mestre dos Fantoches, é um programa que tomou consciência da sua própria existência, mas reconhece que não traz consigo as características de um ser vivo, como a reprodução e a mortalidade. É uma inteligência artificial que pode assumir qualquer forma para si, e o desfecho do anime, que conta com continuações, é inquietante pelas possibilidades que permite.

O Mestre dos Fantoches num dos grandes momentos do desfecho do anime. Reparem como o enquadramento que une os rostos do vilão e de Motoko é bem sugestivo para o que irá acontecer depois.


SPOILERS – Leia somente se já assistiu o filme


Ao assumir o corpo de uma mulher, o Mestre dos Fantoches se estabelece como uma figura enigmática e poderosa, mas que, mais preocupado com sua natureza do que em ter atitudes maniqueístas de vilão , propõe a Motoko unir-se a ela. Essa fusão dessas duas inteligências, uma formada por um corpo ciborgue com um cérebro humano e outra formada essencialmente de uma grande quantidade de dados, é capaz de gerar uma terceira entidade, que vemos ao final do longa, apropriadamente num corpo de criança. Nesse momento recordei da abordagem empregada por José Padilha em sua refilmagem de “Robocop”. Se num primeiro momento Murphy é mais máquina que homem, as lembranças e sentimentos próprios de sua humanidade afloram, fazendo com que no terceiro ato aja a perfeita junção do homem com a máquina e tornando o controle sobre ele inesperado, uma vez que  o sistema agora inclui um cérebro humano tornando as suas reações e respostas não tão previsíveis quanto se poderia esperar. Naturalmente essa visão também pode se aplicar ao “Robocop” clássico de Paul Verhoeven.


Os enquadramentos acima reforçam a solidão de Motoko e sua busca existencial pela própria essência.


O fato é que o anime “O Fantasma do Futuro” traz ideias mais provocantes e reflexões realmente bem construídas que o live-action, além do fato de contar com uma boa dose de violência, lutas bem orquestradas, um ritmo mais lento que contribui para o desenvolvimento da personagem principal e um casamento interessante entre a cultura cyberpunk construída por “Blade Runner” e posteriormente pelo livro “Neuromancer”, de William Gibson, com a cultura japonesa que evoca uma espiritualidade muito presente, forçando as línguas ocidentais a procurar nas palavras “fantasma” e “alma” a essência presente no ser humano tão almejada pela ciborgue Major.

O vídeo acima compara enquadramentos do filme que remetem diretamente ao anime.

A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell (2017)

Direção: Rupert Sanders

Elenco: Scarlett Johansson , Pilou Asbæk , Chin Han , Anamaria Marinca , Danusia Samal , Rila Fukushima , Peter Ferdinando , Yutaka Izumihara , Kaori Momoi , Michael Wincott , Michael Pitt, Juliette Binoche , Takeshi Kitano , Daniel Henshall

Roteiro: Jamie Moss , William Wheeler , Ehren Kruger

Fotografia: Jess Hall

Música: Lorne Balfe

Montagem: Neil Smith , Billy Rich , Billy Rich

Design de Produção: Jan Roelfs

Figurino: Kurt and Bart


O Fantasma do Futuro (1995)

Direção: Mamoru Oshii      
         
Roteiro: Shirow Masamune, Kazunori Itô, baseado no mangá deMasamune Shirow
Elenco: Atsuko Tanaka, Akio Ôtsuka, Kôichi Yamadera, Yutaka Nakano, Tamio Ôki, Tesshô Genda, Namaki Masakazu, Masato Yamanouchi, Shinji Ogawa, Mitsuru Miyamoto, Kazuhiro Yamaji, Shigeru Chiba, Hiroshi Yanaka, Ginzô Matsuo      
        
Música: Kenji Kawai     

Fotografia: Hisao Shirai

Montagem: Shûichi Kakesu      

Design de Produção: Takashi Watabe

Star Trek: Discovery – Trailer


Star Trek é um caso raro de uma série de televisão que constantemente se reinventa dentro da narrativa televisiva e que migrou para o cinema atingindo resultados espetaculares, com uma série de filmes memoráveis.

Se a série clássica era progressista e inovadora em seu tempo quando fora exibida na televisão (de 1966 a 1969), contando com enredos ousados e muito criativos, o fator orçamento e as limitações da época são sensíveis quando se assiste hoje em dia. A falta de efeitos visuais mais convincentes e a pouca verossimilhança que a geografia dos planetas explorados e o aspecto sempre humanoide das raças alienígenas, que não parecem ter sofrido mutações distintas dos seres humanos, são fatores que se sente na série original que durou por três temporadas. Porém, com o sucesso dos filmes que trouxeram de volta a tripulação original em produções de respeito em filmes muito bem realizados, muitos deles considerados clássicos do gênero de ficção científica, como o espetacular “Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan“, de Nicholas Meyer, nasceram várias séries que se passam nesse universo criado por Gene Roddenberry.
Num breve histórico, “Star Trek The Original Series“, foi exibida de 8 de setembro de 1966 a  3 de junho de 1969, que narra a história da nave USS Enterprise em uma missão de cinco anos para explorar o espaço. O elenco principal era composto por William Shatner como o Capitão James T. Kirk, Leonard Nimoy como Spock, DeForest Kelley como Dr. Leonard McCoy, James Doohan como Montgomery Scott, Nichelle Nichols como Uhura, George Takei como Hikaru Sulu e Walter Koenig como Pavel Chekov
Star Trek: The Animated Series” foi uma animação exibida entre 1973 a 1974, contando com o elenco original da dublagem dos personagens.
Star Trek: The Next Generation“, tem seu enredo ambientado aproximadamente um século após a série original, com a nave USS Enterprise-D e sua tripulação: Capitão Jean-Luc Picard (Patrick Stewart), o Comandante William T. Riker (Jonathan Frakes), engenheiro chefe Geordi La Forge (LeVar Burton), oficial de segurança Tasha Yar (Denise Crosby), Worf (Michael Dorn),o primeiro Klingon a fazer parte da na Frota Estelar, a médica chefe Dra. Beverly Crusher (Gates McFadden), o androide Data (Brent Spiner) e o filho da Dra. CrusherWesley Crusher (Wil Wheaton) e a conselheira betazóide Deanna Troi (Marina Sirtis). Foi ao ar de  28 de setembro de 1987 a  23 de maio de 1994, com sete temporadas.
Star Trek: Deep Space Nine” se passa logo após “The Next Generation“, estreando em 3 de janeiro de 1993 e terminando em 2 de junho de 1999, finalizando com sete temporadas. Ao invés de se passar numa nave, como as séries anteriores, esta se passa principalmente em uma estação espacial cardassiana conhecida como Terok Nor, renomeada como Deep Space 9. A série retrata a vida dos tripulantes da estação e no elenco estãoBenjamin Sisko, o lider, interpretado por Avery Brooks e Kira Nerys interpretada por Nana Visitor.
Star Trek: Voyager” foi ao ar de 16 de janeiro de 1995 até 23 de maio de 2001, tendo sete temporadas, contando a história da Capitã Kathryn Janeway, interpretada por Kate Mulgrew, que se passa quase ao mesmo tempo que “Star Trek: Deep Space Nine” e teve sete temporadas, enriquecendo mais a mitologia da série. 
Star Trek: Enterprise” foi ao ar de 26 de setembro de 2001 até 13 de maio de 2005 e seu enredo de passa antes da série original, abordando a tripulação da primeira nave de Dobra 5, a Enterprise comandada pelo Capitão Jonathan Archer interpretado por Scott Bakula e pela Subcomandante vulcana T’Pol interpretada por Jolene Blalock.
Com a reinvenção de Star Trek nos cinemas, iniciada por J. J. Abrams, a série ganhara um aspecto mais voltado para a ação. Muito do progressismo, otimismo e representatividade está nas séries de TV, que contam com uma Capitã em “Star Trek: Voyager”, Kathryn Janeway, interpretada por Kate Mulgrew e um protagonista negro Benjamin Sisko, interpretado por Avery Brooks em “Star Trek: Deep Space Nine“. Pois esse novo trailer de “Star Trek: Discovery”, mais nova série ambientada nesse universo criada por Bryan Fuller e Alex Kurtzman e que será exibida pela Netflix e pela CBS All Access mostra que terá muita ação e conta com ótimos efeitos visuais e maquiagem, mas também promete que haverá conflitos bem desenvolvidos e tensão para contar a história da ascensão do Império Klingon, ambientando-se dez anos antes da série original. O elenco conta com Sonequa Martin-Green como a protagonista Michael Burnham, que segundo fora divulgado é irmã de Spock, filha de Amanda Grayson, mãe humana do personagem clássico. Jason Isaacs como Capitão Lorca, Doug Jones como Tenente Saru, Shazad Latif como Lieutenant Tyler, Maulik Pancholy como Dr. Nambue, Michelle Yeoh como Captain Georgiou, além de Wilson Cruz  e Anthony Rupp  que formarão um casal gay na série.
Em destaque o trailer de “Star Trek: Discovery”, juntamente com outras referências. A série estreia no dia 25 de setembro. Vale citar que todas as outras séries comentadas aqui também estão na Netflix.

Moonlight: Sob a Luz do Luar – Breve Comentário

Com uma mensagem potente e relevante, Barry Jenkins entrega um filme que merece ser visto também pela sua concepção cinematográfica contemporânea. Com uma câmera que sutilmente viaja junto com seus personagens através da trajetória do garoto Chiron (Ashton Sanders), que desde o início do longa sofre de preconceitos e opressões, testemunhamos, num elenco composto exclusivamente por atores negros, o peso e a dificuldade do preconceito na sociedade contemporânea. Questões sobre homossexualidade e drogas são abordadas pelo filme com maturidade e verdade através da trajetória de seu personagem.

O diretor entrega enquadramentos compostos com uma beleza extrema e se comunica muito bem através da fotografia remetendo muitas vezes ao cinema de Wong Kar Wai (“Felizes Juntos”, “Amor à Flor da Pele”, “2046”), ao mesmo tempo que sua câmera dinâmica produz alguns momentos de perda de foco , lembrando muito os últimos trabalhos de Terrece Mallick, assim como a maneira crua com que retrata a realidade de Chiron remete ao que Fernando Meirelles fizera em “Cidade de Deus”, Bruno Barreto em “Última Parada 174” e mesmo Walter Salles ao longo de sua filmografia. Dessa forma Barry Jenkins já se torna um cineasta que se destaca pelo difícil equilíbrio entre o lirismo e a crueza que ditam o tom de “Moolight”.

O estudo de personagem desenvolvido aqui em três capítulos que formam os três atos da história compõe um arco para o protagonista, estabelecendo um ciclo. Todas as características desenvolvidas pelos interpretes deste personagem formam uma unidade e transmitem um toque de tristeza para o garoto. Barry Jenkins mais uma vez acerta quando evita de estabelecer uma relação de pai e filho entre Chiron e Juan durante todo o longa e criar um filme melodramático parecido com muitos que já existem. A sua maneira de contar essa história é eficiente, poderosa e permite grande reflexão sobre a natureza do ser humano, sobre a sociedade contemporânea e a busca de identidade.

Spoiler  (Leia somente se já assistiu ao filme)

É interessante perceber que por mais que Chiron seja tratado como homossexual ao longo dos dois atos do filme, o personagem em si em nenhum momento parece ter a chance de se descobrir dessa forma. Tendo tido uma experiência de caráter sexual com Kevin, filmada de maneira sutil e terna pelo diretor, Chiron  é um ser humano que sente a falta de afeto, tendo-o encontrado nessa experiência. Retratado desde o início como um garoto que parece construir um muro ao seu redor baseado nas experiências traumáticas com a mãe e na escola e dessa forma parece nunca ter tido a liberdade necessária para se descobrir, como retrata em seu diálogo com Kevin já no terceiro ato, em que revela que aquela experiência fora a única vez que outra pessoa o  tocara. É no terceiro ato que temos também a grande transformação do personagem e o fechamento do ciclo, quando Chiron, agora apelidado de Black, se torna um traficante tal qual Juan, que lhe acolhera no primeiro ato do longa. É ali que o personagem fortifica o muro que o separa das pessoas, criando uma persona a fim de se proteger das pancadas que a vida lhe desferira desde cedo, se escondendo dos outros nessa nova personalidade e, consequentemente, de si mesmo. O mais triste é que toda essa dor não se limita a um personagem de um filme, mas é sintoma de uma parcela da sociedade excluída e oprimida pelas suas opções ou simplesmente pela cor de sua pele. 

Direção: Barry Jenkins

Elenco: Alex R. Hibbert , Ashton Sanders , Trevante Rhodes , Naomie Harris , Janelle Monáe, Jaden Piner , Jharrel Jerome , André Holland , Mahershala Ali

Roteiro: Barry Jenkins

Fotografia: James Laxton

Música: Nicholas Britell

Montagem: Joi McMillon , Nat Sanders

Design de Produção: Hannah Beachler

Figurino: Caroline Eselin

Girlboss – 1ª Temporada

Geralmente séries de comédia com episódios de pouco mais de vinte minutos se baseiam na criação de estereótipos para caracterizar seus personagens, com o objetivo de desenvolver com certa agilidade uma trama no tempo estipulado. “The Big Bang Theory“, apesar de eu ter visto poucos episódios, em temporadas variadas, é uma das séries que mais usa a criação de estereótipos de personagens. Esta mais nova série da Netflix, “Girlboss“, criada por Kay Cannon, gera essa impressão nos primeiros episódios, contando a história “baseada livremente em fatos reais” de Sophia, uma garota narcisista que não consegue se ajustar a nenhum emprego e tem um relacionamento difícil com o pai, mas que por acaso descobre ao criar uma conta do eBay e passar a vender roupas vintage por ela reformadas e revendidas uma possível vocação e independência financeira, criando a sua página no eBay chamada Nasty Gal.

Nesses primeiros episódios temos a impressão de que estamos assistindo o estereótipo de uma garota rebelde e narcisista que, interpretada por Britt Robertson com sua habitual competência para parecer espontânea e natural, sem fazer força para atuar, tem em sua intérprete e elenco de apoio a principal motivação para seguirmos acompanhando a sua história. Porém, a medida que o enredo avança percebemos o esforço do roteiro em, não justificar, mas desenvolver e criar um contexto em que todo o comportamento de Sophia se baseia, desde sua relação difícil com o pai e a ausência da mãe, brilhantemente desenvolvida, até a relação com a melhor amiga Annie (Ellie Reed), que passa por altos e baixos ao longo da temporada. A medida que seu negócio evolui e sua vida pessoal passa por severas mudanças, o relacionamento com Shane (Johnny Simmons) é desenvolvido e serve de catalizador para o orgulho e egocentrismo da personagem, mas também como uma maneira de combatê-lo e colocá-lo em perspectiva. Como aqui não temos uma menina inocente e passiva, é possível que não concordemos com as atitudes de Shopia, mas o seu sonho de felicidade, liberdade e independência é algo que cativa e que se assume como sendo o principal discurso construído pela série.

A real Sophia Amoruso, com o livro que inspirou o desenvolvimento da série

É interessante notar que, como a história se passa entre 2007 e 2008, nesses dez anos a nossa tecnologia e a maneira como nos relacionamos com ela mudou muito, desde os celulares, passando pela maneira de usar a internet, fica muito clara a época em que se passa a série. O trabalho de montagem feito no decorrer da série atinge, em alguns episódios, quase a perfeição, tornando a narrativa fluida e seguindo um ritmo que remete constantemente a natureza da sua protagonista. O uso das cores pela fotografia ressalta que o assunto moda é forte na série, gerando planos muito bem iluminados e compostos, fugindo da paleta monocromática e sem criatividade que a maioria das séries cômicas costuma recorrer.

Revelando-se, quase como uma surpresa agradável no seu desfecho, um coeso estudo de personagem, “Girlboss” é uma série que passa a humanidade da sua protagonista em seus erros e acertos, incertezas e pedras no caminho, envolvendo o espectador pelas situações cômicas orgânicas e genuinamente engraçadas, como também pela busca de um sonho que Shopia empreende nesses treze divertidos episódios.

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Criador: Kay Cannon

Direção: Christian Ditter, Steven Tsuchida, John Riggi, Amanda Brotchie, Jamie Babbit

Roteiro: Kay Cannon, Caroline Williams, Sonny Lee, Eben Russell, Jake Fogelnest, Joanna Calo, Jen Braeden

Elenco: Britt Robertson, Ellie Reed, Johnny Simmons,  Alphonso McAuley,  RuPaul, Dean Norris, Jim Rash, Amanda Rea, Rebecca Krasny, Melanie Lynskey