Tokyo Vice – Episódio de estreia dirigido por Michael Mann

Desde 2015 com “Hacker” que o diretor Michael Mann não assina a direção de um filme ou, como nesse caso, uma série. Contando a história de um jornalista ocidental que trabalha para um jornal japonês em Tóquio e acaba tendo que confrontar um dos mais perigosos chefes do crime da cidade. Essa situação já aparece nos primeiros minutos do episódio de estreia, antes de voltar para o ano de 1999 e passar a contar a sua história do princípio. “Tokyo Vice” se vale muito da experiência e do talento do veterano diretor de “Miami Vice” e “Fogo Contra Fogo” para construir o tom da série, a começar pela textura da imagem, profundidade de campo reduzida, paleta de cores vibrante e ao que parece a série é filmada em câmera digital como os últimos trabalhos de Mann (quem assina a fotografia no primeiro episódio é John Grillo, de “Westworld“). 

O diretor também usa o espaço da cidade para caracterizar os conflitos das personagens de maneira muito visual e sofisicada. Conforme foi citado no ótimo artigo da IndieWire escrito por Ben Travers, que pode ser acessado aqui, um dos momentos-chave do episódio é quando vemos um close desfocado do rosto de um homem, enquanto ao fundo vemos várias linhas de trens que passam por aquele espaço, criando um emaranhado, uma teia de caminhos. A medida que o foco encontra o rosto do sujeito morto, o movimento de câmera revela uma espada no seu peito, incrustada tal qual aquelas linhas de trem que perfuram o espaço da cidade, e a máfia e seus crimes encobertados revelam-se tão emaranhados naquela sociedade quanto aquelas linhas de trem.

Já o Jake interpretado por Ansel Elgort mostra-se um ocidental deslocado por aqueles costumes e aquela sociedade, na maneira como é tratado na redação do jornal pelo seu superior, com preconceito por ser um estrangeiro e judeu, mesmo que brilhante no domínio do idioma japonês. Claro que essa trama do ocidental que irá desvendar os crimes da máfia japonesa com o seu olhar distinto pode soar como uma trama de “salvador branco”, de fato, apesar de termos Ken Watanabe no elenco para equilibrar a balança. Dois momentos em particular que Mann mostra o personagem caminhando na rua, subindo até o seu quarto e acendendo a luz do quarto, a única luz ligada naquele horário, sob o “olhar” de um outdoor bem em frente. Esse mesmo outdoor é mostrado em outro plano espetacular através da janela do quarto do protagonista em outra cena. Jake é esse sujeito observado e vigiado pelo crime organizado enquanto tenta desvendar os assassinatos que presencia, e o diretor Michel Mann é certeiro em mostrar isso visualmente.

Os outros dois episódios apresentam uma trama mais intrincada e guiada por diálogos, sem o brilhantismo da direção de Mann. Mesmo assim é uma série que, com três episódios até agora, instiga o espectador numa ótima trama investigativa.

Abaixo o trailer de “Tokio Vice“:


Abaixo os trailers de “Profissão: Ladrão“, “Fogo Contra Fogo“, “Colateral” e “Miami Vice“, grandes filmes de Michael Mann.

Fresh – Breve Comentário

A capacidade do cinema de horror de sugerir vários subtextos e se camuflar em vários gêneros é louvável. Há o slacher (terror com um assassino), o sobrenatural, o extremamente violento, o cômico, jocosamente nomeado de terrir, já “Fresh” mistura os códigos da comédia romântica, outro gênero esquemático e cheio de clichês como o terror (talvez até mais engessado e com sérias dificuldades em se reinventar), que são deliciosamente burlados para dar lugar a um longa desconfortável e nojento, no bom sentido, que me lembrou um pouco “Raw“, porém com menos cenas gráficas e com um comentário social e feminista mais à vista.

Fresh” é um longa que surpreende a cada virada de ato. Até aparecerem os seus créditos iniciais passamos por algumas mudanças de trama e inversões de expectativa que aumentam a tônica da narrativa e constroem um discurso sobre a objetificação da mulher, numa articulação de ideias coerente.

Ao falar sobre a dinâmica moderna dos relacionamentos e o uso de aplicativos, em que julgamos as pessoas por fotos, pela aparência construída e muitas vezes manipulada, “Fresh” fala sobre a superficialidade presente em considerarmos as pessoas como meros pedaços de carne. Certamente a mulher é quem mais sofre dessa estigma. E se isso é sugerido pelo início do longa, o desenvolvimento cada vez mais literal dessa premissa gera uma oportunidade muito original de explorar a maneira como a mulher é vista por essa cultura moderna de fotos e aplicativos.

Com uma decupagem que foca em comidas, bocas mastigando, partes do corpo, ou de um corpo sem partes, “Fresh” pode até pecar um pouco no desfecho, que acontece às custas de uma série de concessões que o personagem de Sebastian Stan comete, mas toda a construção e quebra de expectativas, muito potencializada pela protagonista misteriosa e engenhosa que nunca revela o que está pensando de fato, é muito bem construída e faz de “Fresh” um longa que certamente ficará fresco na memória por muito tempo.

Direção: Mimi Cave

Elenco: Daisy Edgar-Jones, Sebastian Stan, Jonica T. Gibbs, Andrea Bang, Dayo Okeniyi, Charlotte Le Bon, Brett Dier, Alina Maris, William Belleau, Lachlan Quarmby, Sunghee Lapell, Arggy Jenati, Anthony Ingram, Frances Leigh, Lance Birley, Joe Costa, Larry Hoe, Scott McGrath, Robert Corness

Roteiro: Lauryn Kahn

Fotografia: Pawel Pogorzelski

Montagem: Martin Pensa

Trilha Sonora: Alex Somers

Missa da Meia-Noite

Diante do caos que é a existência e da nossa busca incessante por entender e explicar tudo à nossa volta, a religião talvez seja o maior alento da humanidade. Sempre conferindo uma motivação final em cada coincidência, golpe de sorte, mérito próprio ou fatalidade, até os mistérios mais inexplicáveis e incoerências que brotam das injustiça sociais são explicadas, satisfatoriamente ou não, como parte do plano personalizado que um Deus onipresente e onisciente preparou para cada um de nós. Diante disso, “Missa da Meia-Noite” extrapola essa ideia através de uma possibilidade fantástica e seu posterior entendimento pelo prisma de uma pequena comunidade de uma ilha formada de 127 pessoas que vivem, como os apóstolos de Jesus, da pesca. Sendo uma comunidade católica, é de se supor que essa visão interpretativa e criação de sentido é construída a partir de uma base hierárquica forte ocupada pela igreja e pelas autoridades locais.
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Viúva Negra – Breve Comentário

Depois de alguns anos e muitos filmes, a Marvel finalmente decide produzir um longa de uma das suas heroínas mais celebradas. O resultado é satisfatório, mas fica uma certa frustração no ar pelas decisões tomadas anteriormente em relação ao destino da personagem e, claro, a superficialidade calculada travestida de um realismo pudico para adolescentes e uma fantasia de pouco encanto que a Marvel imprime nas suas produções.  Continuar lendo

Vozes e Vultos

Catherine, uma artista de Manhattan (Amanda Seyfried) se muda com sua família para o Vale do Hudson. Conforme ela começa sua nova vida num vilarejo histórico, ela passa a suspeitar que seu casamento e sua casa estão cercados por segredos obscuros.

A trama era promissora. Uma família quebrada, marido e esposa com problemas e relacionamento cheio de mazelas e abusos. Para apimentar a trama dando um ar fantástico, uma casa mal-assombrada. Porém James Norton (George Claire) não toma boas escolhas de interpretação, dando a impressão de não estar à vontade no papel, e isso nem ao menos é usado em favor do filme. Natalia Dyer (Willis) aparece e some, sem maiores explicações. A subtrama de Eddy Vayle, interpretado por Alex Neustaedter e o seu passado com a família na casa não é explorado para nenhum fim, bem como os problemas de saúde de Catherine, e aqui eu dou um voto a favor da Amanda Seyfried , que tenta segurar o filme nas costas e faz dele algo suportável por uma boa parte do tempo. 

As decisões tomadas pelos diretores investem numa ambientação muito bem executada, mas a maneira desleixada com que algumas cenas fluem, rápidas demais com cortes abruptos e outras lentas demais narrando situações que não movimentam a história pra frente, tornam o filme irremediavelmente longo, com inacreditáveis duas horas.

Como drama familiar é falho, como filme de fantasmas falta aquela costura que faz a transição entre o real e o sobrenatural parecer fluida, ligando as várias dramaturgias e gêneros numa mistura coesa. Lembrei muito de “Os Órfãos“, a refilmagem de “Os Inocentes” comandada pela Flora Sigismondi e que, apesar de todos os defeitos de concepção e roteiro que tem, ainda se sai bem melhor que esse “Vozes e Vultos“. O desfecho poético poderia até funcionar, se tivesse alguma poesia ao longo das duas horas que passaram.

Direção: Shari Springer Berman, Robert Pulcini

Roteiro: Shari Springer Berman, Robert Pulcini, baseado numa história de Elizabeth Brundage

Elenco: James Norton, Ana Sophia Heger, Amanda Seyfried, Charlotte Maier, Kristin Griffith, Ben Graney, Molly Jobe, Joey Auzenne, Kelcy Griffin, Cotter Smith, Dan Daily, Karen Allen

Trilha Sonora: Peter Raeburn

Fotografia: Larry Smith

Montagem: Louise Ford, Andrew Mondshein

Rebooted – Breve Comentário


Diversas vezes no cinema uma adição técnica surge. Desde a melhoria da imagem e o aumento da sua razão de aspecto, o acréscimo da cor e do som, o desenvolvimento de efeitos especiais cada vez mais rebuscados. E a cada inovação os profissionais eram obrigados a se reinventar e muitos perdiam permanentemente a sua colocação na indústria. Filmes como “O Artista” e “Cantando na Chuva” tratam dessas mudanças no contexto no advento do cinema sonoro e a dificuldade dos atores em se recolocar, pois passavam a ser avaliados inclusive pela voz.


Partindo do conflito da recolocação no mundo do trabalho, “Rebooted” é um curta-metragem de 12 minutos (disponível no YouTube) que acompanha a história de Phill, um esqueleto em stop-motion que se vê obsoleto diante dos modernos recursos de imagens geradas por computador (CGI) e tecnologias de captura de movimento. Phill é uma referência clara ao longa “Jasão e os Argonautas”, em que um exército de esqueletos brotava do chão para enfrentar os heróis, e o filme que Phill atuava recria essa cena em menor escala mas com muito charme, soando nostálgico quando rememora o uso de stop-motion em filmes live-action. Particularmente sempre achei eficiente o uso desse tipo de animação em monstros e criaturas fantásticas devido ao movimento característico e pouco realista em um objeto analógico e, consequentemente, real. Mas como se não bastasse “Rebooted” resgata a história dos efeitos ópticos e mecânicos com muito humor quando apresenta os amigos de Phill, um dinossauro animatrônico, um mostro de borracha, um pequeno dinossauro 2D e o famoso efeito CGI de metal líquido do popular T-1000 de “O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final”. A luta aqui é não deixar que “10,000 Sandals“, o filme do passado que fora responsável pelo sucesso do protagonista, seja refilmado utilizando captura de movimento, e os desdobramentos dessa missão são hilários e até tocantes.

No desfecho “Rebooted” resgata aquela paixão que todo o artista tem pela sua arte e, sendo Phill um ator de papéis de monstro, fica clara a satisfação que sente por saber que ainda pode voltar a assustar como no passado.


Abaixo o curta completo disponível no YouTube e um vídeo dos bastidores.


Direção: Michael Shanks


Roteiro: Michael Shanks


Elenco: Glen Hunwick, Peter Paltos, Daniel Daperis, Michael Wahr, Holly Austin, Albert Garcia, Michael Shanks, Alex Cooke, Michelle Zintschenko, Nicholas Issell, Rennie Watson, Lee Beckhurst, Adam McKenzie, Nicholas Colla, Nicolette Minster, Sol Feldman

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Raya e o Último Dragão


No mundo fantástico de Kumandra, humanos e dragões viviam juntos em harmonia. Porém quando monstros sinistros conhecidos como Druun ameaçaram a terra, os dragões se sacrificaram para salvar a humanidade. Depois de 500 anos, esses monstros voltam e cabe a uma solitária guerreira chamada Raya encontrar o último dragão para finalmente eliminar os Druun

Em um mundo em que a polarização politica e ideológica atinge o patamar de quase não existir um meio termo, em que as falas são silenciadas e os xingamentos e cancelamentos tomam o protagonismo, “Raya e o Último Dragão” surge como um respiro de alívio mostrando que o diálogo e a confiança entre pessoas de opiniões diferentes pode existir e ser a principal arma contra um obscurantismo crescente, simbolizado pelos monstros de névoa negra chamados Druun, que transformam pessoas em pedra, mais um simbolismo pertinente.

Nota-se aqui o belíssimo trabalho de construção de cenários inspirados em regiões do sudeste asiático que foge dos estereótipos e busca  uma autenticidade notável, variando a sua geografia que transita do desértico, passando por florestas, feiras de comércio e reinos encantadores. 

Kelly Marie Tran, atriz de descendência vietnamita que sofrera ofensas machistas e racistas no Instagram quando atuou em Star Wars, é perfeita dublando a protagonista Raya, dotada de uma autossuficiência e determinação invejáveis. A sua antagonista Namaari (Gemma Chan) possui uma impassividade ímpar e uma trajetória igualmente cativante. Awkwafina como Sisu dá um show de expressividade e humor, caracterizando uma personagem com a dose certa de inocência capaz de mudar aquele mundo dividido e ameaçado, conduzindo as transformações vividas tanto pela protagonista como por sua antagonista. Os personagens de apoio ao trio central funcionam de maneira cômica e encantam, com destaque para a bebê Noi

Surpreende positivamente que em “Raya e o Último Dragão” não tenha canções, recurso muito utilizado pelas animações da Disney para vender as emoções de forma mais explicita, aliando sentimentos e pontos de virada da trama à melodias que grudam no ouvido, como fora “Let It Go” para Frozen. Porém aqui a confiança é total nos diálogos, nos eventos retratados e no ritmo construído, que é  extremamente dinâmico contando com verdadeiras sequências de ação que mostram lutas marciais, tendo ao fundo como grande destaque uma trilha sonora composta pelo talentoso James Newton Howard que se vale de motivos étnicos (sem estereótipos), coro, sons eletrônicos e variação de ritmos que contribuem tanto para os momentos de ação que precedem a trilha como para os momentos épicos e mais emocionais. 

A inventividade visual da  animação também cativa, criando composições cheias de cor e textura, personagens com caracterizações criativas  e movimentos fluidos, permitindo-se imaginar um visual distinto para os dragões e para o grande amigo de Raya, Tuk Tuk, que acaba se revelando um curioso meio de transporte. Esses personagens graciosos contam com muito apelo infantil e são fáceis de imaginá-los na forma de animais de pelúcia numa loja.

Para além das mensagens de diálogo e confiança contra um obscurantismo crescente, “Raya e o Último Dragão” mostra o poder da sororidade, da empatia e da solidariedade usando como fio condutor uma princesa inspiradora do sudeste asiático, juntamente com a primeira atriz descendente da região que lhe dá voz de protagonista. 


Direção:  Don Hall e Carlos López Estrada
Roteiro: Adele Lim, Qui Nguyen
Elenco: Kelly Marie Tran, Awkwafina, Gemma Chan, Alan Tudyk, Daniel Dae Kim, Sandra Oh, Benedict Wong, Lucille Soong, Thalia Tran, Izaac Wang, Jona Xiao
Música: James Newton Howard
Montagem: Fabienne Rawley, Shannon Stein

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